Diariamente somos bombardeados em todas as mídias com produtos estadunidenses. Para nós gamers e nerds, os costumes japoneses também se fazem pesadamente presentes. Na escola temos um ensino muito centrado na Europa ocidentalizada, o que empobrece nosso conhecimento de tantas outras civilizações e da própria história da humanidade. Acredito que a cultura eslava seja um desses tesouros deixados de lado, e este artigo não é de uma especialista, mas sim de uma ávida curiosa. O jogo The Thaumaturge, RPG isométrico desenvolvido pela Fool’s Theory e publicado pela 11 bit studios, me deslumbrou no aspecto histórico. O jogo se passa em 1905 na capital polonesa de Varsóvia. É impossível pensar em cultura eslava sem reconhecer o papel da Rússia e da União Soviética, mas os povos eslavos abrangem muito mais do que um único país, quase coincidindo com todo o leste europeu. Inclusive, a origem mais aceita para essa etnia é a própria Polônia, tendo seu povo emigrado e se multiplicado Europa afora.

Folclore
A palavra taumaturgia representa capacidades ligadas ao sobrenatural, magias e milagres. Não surpreendentemente, as principais religiões adotam o conceito e consideram como taumaturgos santos, gurus, profetas e monges. Um dos mais famosos com essa alcunha é São Nicolau. Mais do que inspiração para a figura do Papai Noel, ele é o santo padroeiro da Rússia. O jogo adapta muito bem essa ideia e coloca o protagonista Wiktor Szulski como um taumaturgo que, na busca pelo seu caminho pessoal de domínio de criaturas espectrais, acaba envolvido em uma trama maior.
Essas criaturas, chamadas de salutors, são os seus companheiros no excepcional combate de turno. Cada uma é inspirada em uma entidade da mitologia, religião ou folclore eslavo. E o mais interessante é que seus golpes estão intimamente ligados ao mito em questão. O salutor principal de Wiktor é Upyr, demônio que precisa do sangue de suas vítimas para manter sua existência. Assim, as habilidades principais desse salutor causam dano ao inimigo curando Wiktor. Parece familiar? Esse demônio eslavo provavelmente deu origem à fantasia do vampiro. A palavra vampiro deriva da forma eslava antiga onpyr, com a adição do som “v” antes de uma grande vogal nasal, característica do búlgaro antigo.

Bukavac, monstro relatado em regiões da Croácia e da Sérvia, sai dos pântanos profundos para dar o bote e estrangular suas vítimas. Sua habilidade é ótima para burlar o turno dos inimigos, atacando-os abruptamente e com ferocidade.
Weles é o Hades eslavo. Deus do submundo, alinha riqueza e engano. O jogador deve apostar alto em suas intrigas, pois suas habilidades têm um percentual de acerto, podendo ser determinantes na sua vitória ou na sua derrota.
Lelek é considerado o espírito da loucura pelo povo cassubiano do norte da Polônia. Seu canto prenuncia a morte e deixa os inimigos atordoados, facilitando nossas ações no combate.
Morana, deusa da morte e do renascimento, é presença unânime no folclore dos países eslavos. Também associada ao inverno, ela atrasa ou anula completamente o turno dos inimigos.
Krampus, o “anti Papai Noel” que pune as crianças malcomportadas, completa a referência à citada etimologia da palavra taumaturgia. Suas habilidades são quase um julgamento, funcionando à base de trocas.
Não bastasse a riqueza dessas criaturas, The Thaumaturge ainda traz salutors de outras duas etnias. Ao resolver um caso cuja pista era uma margarida do deserto africano, nos deparamos com Djinn, senhor dos desejos na cultura islâmica. Lembrei-me dele de Assassins’ Creed Mirage, cuja característica mais ressaltada era a criação de ilusões. Em The Thaumaturge o gênio da lâmpada concede desejos, mas eles sempre vêm com um preço. Não deixa de ser uma miragem.
Por fim, Wiktor pode ter como companheiro um Golem, criatura lendária judaica. Ele é invocado como um robusto protetor, embora sua natureza de agir acima de tudo possa ter efeitos colaterais indesejados. Isso aparece no jogo de forma cabalística 😅, sendo ele uma das principais forças no combate. Mas qual a razão da existência de uma criatura judaica nesse jogo?
Imperialismo, socialismo e holocausto
Nem só de fantasia vive esse RPG. O grande trunfo de The Thaumaturge é entregar um gráfico lindo, um combate muito estratégico, uma trama interessante de investigações, escolhas que mudam o final, uma trilha sonora mística e o folclore instigante inseridos no caos dos acontecimentos reais do ano de 1905 no Império Russo. Como é de costume no contexto internacional, a Polônia sofreu inúmeras invasões e repartições de seu território entre outros países à revelia de seu povo, tendo o Império Russo consolidado sua dominância em 1815. No início do século XX estamos prestes a ver a eclosão da revolução russa com o assassinato do czar Nicolau II e a implantação do comunismo (indico fortemente a série Os Últimos Czares da Netflix). O descontentamento popular com a autocracia obviamente não se limitava à pátria mãe, mas mostrava-se mais forte ainda nas regiões dominadas pelo Estado expansionista.

Faz parte do enredo do jogo a Okhrana, polícia imperial secreta criada pelo pai de Nicolau II para reprimir quaisquer movimentos contrários à dinastia. A personagem Wanda encarna a polonesa Rosa Luxemburgo (citada no jogo) que sai da teoria e vai para a prática, sendo a líder dos revolucionários que funcionam não apenas como contrapartida da Okhrana, lutando pela independência da Polônia, mas exigem também direitos para os operários e a igualdade para as mulheres. A Polônia foi um dos primeiros países a garantir o sufrágio feminino em 1918.
Ainda na temática feminista, a irmã de Wiktor, Ligia Szulska, é frequentadora da “Flying University”, grupo clandestino para preservação da cultura polaca e para ensino de mulheres, que eram excluídas do sistema formal de educação. Sua aluna mais famosa foi Maria Salomea Skłodowska-Curie, primeira pessoa no mundo a ganhar dois Prêmios Nobel, e única a ganhar em duas áreas científicas diferentes.
O jogo toma a liberdade de colocar o enigmático e controverso Gregori Rasputin em Varsóvia, embora não haja registros de sua estadia na Polônia antes de 1912. Milagreiro, curandeiro, hipnotizador, depravado contumaz e coach de czar, o monge louco é um dos fios condutores da narrativa, integrando bem esses seus dons sobrenaturais com a tônica taumatúrgica.
A própria taumaturgia serve como uma metáfora. Seus adeptos sofrem perseguição e preconceito, e em algum momento o jogo a iguala à perseguição a judeus e homossexuais. O estigma é bem representado no compositor russo Piotr Ilitch Tchaikovsky, que viveu nessa época. Forçou-se a se casar com uma mulher, e tentou se afogar logo depois no frio rio Moskva. Sua morte anos depois é envolta em teorias, sendo uma delas também ligada às pressões que sofria por ser homossexual. A delicadeza do tema em The Thaumaturge envolve Ligia, que talvez sem o jogador perceber, passa por dilemas parecidos.
Há ainda nessa abundante caracterização do mundo real mini missões com informações sobre acontecimentos recentes ao redor do globo. O protagonista observa um cometa descoberto em 1905, assiste a uma partida do recém inventado futebol, pega fila para conhecer o engenhoso elevador do hotel mais chique de Varsóvia, escuta discos de compositores clássicos da então era romântica, como o polonês Frédéric Chopin ou o russo Modest Mussorgsky e sente estranheza com o ragtime de Scott Joplin saído do novo mundo. Até o ciclo do café no Brasil recebe uma referência, com menção ao delicioso sabor forte do produto exportado do Rio.

Voltando à pergunta do salutor Golem: vemos em Varsóvia e são parte importante do enredo sinagogas, judeus e rabinos. Os judeus foram perseguidos diversas vezes ao longo da história. Na Europa católica, os resquícios da Inquisição fizeram com que fossem malquistos em grande parte dos países. A Polônia, como exceção, prezando em ser um local de tolerância religiosa e autonomia social, os recebia inclusive com incentivos. A comunidade judaica na Polônia chegou a tornar-se uma das maiores do mundo, mesmo com o grande antissemitismo do Império Russo. Embora ultrapasse em muito a época do jogo, é possível entender onde isso levaria. Não à toa a invasão da Polônia por Hitler é considerado o início da Segunda Guerra Mundial e não à toa uma das maiores atrocidades da nossa história, o campo de concentração de Auschwitz, fica no sul do país. Com certeza esse é um marco na história polaca, e o jogo não deixa de tocar na situação que o antecedeu.
O único deslize da Fool’s Theory e da 11 bit studios foi não terem incluído uma localização em português. Porém, a publicadora polonesa tem entregado jogos fantásticos. The Thaumaturge, Indika e The Alters me encantaram não apenas por suas jogabilidades e narrativas, mas principalmente pelas temáticas puxadas para a cultura eslava, com a qual temos tão pouco contato. Sou grata à possibilidade de, a partir de um jogo, ter recebido tanto estímulo para conhecer mais desse povo e de seus costumes. Mais do que diversão, recebi uma aula de história explorando o excelente jogo The Thaumaturge.
Respostas de 4
Que texto maravilhoso Ju, vim ler sobre o jogo e ganhei uma aula de história. Parabéns tú é fodaaaaa
Muito obrigada! Aprendi muito fazendo esse texto!
Parabéns pelo texto, Juliana!
Extremamente rico, interessante e gostoso de ler.
Quando, a partir de um jogo, conseguimos refletir e compreender situações sociais, culturais, da vida de maneira geral, a experiência fica ainda mais completa.
Muito obrigada por ter lido e dado seu feedback! Concordo 100% com você! Jogos podem proporcionar experiências muito além do joytisck.